O texto 2 faz parte de uma obra maior, História de cronópios e de famas, publicado em 1962 pelo escritor argentino Júlio Cortázar (1914-1984). Em quatro partes, o que você lerá abaixo faz parte da primeira parte - Manual de Instruções - Quanto ao título geral, cronópios são seres imaginários alimentados pela poesia. Já as famas, são seres racionais, práticos, objetivos. As esperanças, também seres imaginários junto com os cronópios e famas, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens e devem ser procurada por quem a deseja.
Texto 1 - A Lágrima (Augusto dos Anjos)
- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorueto de sódio, água e albumina …
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
- A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina.
- O farmacêutico me obtemperou. -
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia!
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro: Edições Pindorama, 1912.
Texto 2 - Instruções para chorar (Júlio Cortazar)
Deixando de lado os motivos, vamos nos ater a maneira correta de chorar, entendendo isso como um pranto que não se transforma em um escândalo, nem que insulte o sorriso com sua paralela e lerda semelhança. O choro médio ou ordinário consiste em uma contração geral do rosto e em um som espasmódico, acompanhado de lágrimas e coriza, esses últimos ao final, pois o choro acaba no momento em que alguém assoa o nariz energicamente.
Para chorar, dirija sua imaginação para você mesmo e se isto acabar sendo impossível pelo hábito adquirido de acreditar em um mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde ninguém entra, nunca.
Chegando o choro, tapar o rosto com decoro usando ambas as mãos com a palma voltada para dentro. As crianças chorarão com a manga do casaco contra o rosto e, de preferência, em um canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.
(Trecho retirado da obra “História de cronópios e de famas” - Júlio Cortazar)
Algumas considerações.
Sobre o poema A lágrima, a composição de Augusto dos Anjos é um soneto de formatação tradicional (dois quartetos, dois tercetos, versos decassílabos e padrão de rimas) embora o assunto fuja completamente da temática tradicional da produção poética até então.
Nele, o eu lírico aborda a lágrima enquanto fisiologia humana, ao explicar sua composição orgânica, independente do motivo do choro. Por outro lado, a ciência não consegue dar um norte em relação aos mistérios da alma e à própria secreção, o que revela a incapacidade de harmonizar razão e emoção, a partir das observações feitas pelo farmacêutico na segunda estrofe.
Nesse momento, a lembrança do pai do eu lírico vem à memória e uma lágrima chega aos olhos. É quando o valor poético da lágrima sobrepuja o próprio valor científico, ainda que a ciência seja a matéria prima desse poema.
Afinal, fabricar uma lágrima requer mais do que clorueto de sódio, água e albumina.
Sobre Instruções para chorar, o narrador apenas instrui o leitor de como chorar corretamente tendo como referência o padrão social vigente. Se o choro não se concretiza, sugestões são dadas para tal.
A obra, de onde esta instrução foi retirada, foi publicada em 1962 pelo argentino Julio Cortazar e é intitulada História de cronópios e de famas. Segundo a Encyclopédie Universalis (Paris, 1970), apresentada no prefácio do livro, a obra é desconcertante e, sobre um fundo de caricatura da vida em Buenos Aires, é uma seleção variada, insólita, de notas, de fantasias e de improvisações. Um humor melancólico, irônico ou violento, cheio de uma curiosa poesia, ali se desdobra num estilo carregado de imagens intensas e de achados verbais e psicológicos.
Sobre a obra História de cronópios e de famas, um breve panorama.
A primeira parte é um Manual de instruções, cujo exemplo está publicado acima; a segunda parte, Estranhas ocupações; a terceira, Matérias plásticas; a quarta e última parte, História de cronópios e de famas.
Na segunda parte, Estranhas ocupações, há um conto interessante cujo título é Perda e recuperação do cabelo. O narrador apresenta a sugestão de um primo mais velho para lutar contra o pragmatismo: arrancar um fio de cabelo da cabeça, dar-lhe um nó bem no meio do comprimento e descartá-lo na pia para, em seguida recuperá-lo no sifão. Como esse fio é o único com um nó nele mesmo, a tarefa será fácil. Entretanto, se esse fio adentrar a rede de esgoto do banheiro, ficará mais difícil essa recuperação. E se esse fio chegar até o esgoto geral da cidade, como recuperá-lo? Havendo sorte, o fio será facilmente localizado no sifão da pia. Segundo o narrador nas próprias palavras, basta pensar na alegria que isso nos provocaria, no cálculo espantado dos esforços economizados por pura sorte para justificar, para escolher, para exigir praticamente uma tarefa semelhante, que todo professor consciente deveria aconselhar a seus alunos desde a mais tenra infância, em vez de secar-lhes a alma com a regra de três composta.
Na terceira parte, Matérias plásticas, há um conto interessante cujo título é O jornal e suas metamorfoses, publicado abaixo.
O jornal e suas metamorfoses
Um, senhor pega um bonde após comprar o jornal e pô-lo debaixo do braço. Meia hora depois, desce com o mesmo jornal debaixo do mesmo braço. Mas já não é o mesmo jornal, agora é um monte de folhas impressas que o senhor abandona num banco da praça. Mal fica sozinho na praça, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até que um rapaz o descobre, o lê, e o deixa transformado num monte de folhas impressas. Mal fica sozinho no banco, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até que uma velha o encontra, o lê e o deixa transformado num monte de folhas impressas. A seguir, leva-o para casa e no caminho aproveita-o para embrulhar um molho de acelga, que é para o que servem os jornais após essas excitantes metamorfoses.
Na quarta e última parte, História de cronópios e de famas. Quem são essas personagens? No prefácio da obra, o autor define cada uma delas. Nas palavras dele:
O próprio autor, uma noite em Paris, num concerto, assim descreveu os seus personagens: "Eram tão estranhos que eu não conseguia vê-los claramente, uma espécie de micróbios flutuando no ar, uns glóbulos verdes que pouco a pouco iam tomando características humanas. "A força dos cronópios é a poesia. Eles cantam, como as cigarras, indiferentes ao prosaísmo do cotidiano; e quando cantam, esquecem tudo, são atropelados, perdem o que levam nos bolsos e até a conta dos dias. Os famas são seres acomodados, prudentes, dados ao cálculo, e embalsamam suas recordações. Se a família vai se hospedar num hotel, mandam um na frente para verificar os preços e a cor dos lençóis. Os famas sabem tudo da vida prática, mas os cronópios sentem por eles uma compaixão infinita. Além dos cronópios e famas, há também as esperanças. "As esperanças, sedentárias — escreve Cortázar —, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso ir vê-las, porque elas não vêm até nós." Os famas dançam trégua e dançam catala, danças essas inventadas pelo seu criador e não se encontram em nenhum folclore argentino ou latino-americano..."
Abaixo, um conto envolvendo esses seres ficcionais.
Tartarugas e cronópios
Agora acontece que as tartarugas são grandes admiradoras da velocidade, como é natural.
As esperanças sabem disso e não ligam.
Os famas sabem e caçoam.
Os cronópios sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha.
Para refletir.
a) Considerando a proposta poética de Augusto dos Anjos ao inserir ciência na produção poética brasileira no início do século XX, esse proceder pode ser relacionado às propostas das Vanguardas Europeias em relação à nova possibilidade de belo na arte?
b) Como você enxerga o posicionamento de Julio Cortazar em passar para o leitor um manual de como chorar corretamente?
c) Que ligações entre as duas leituras (poema A lágrima e Instruções para chorar) apresentadas podem ser feitas?
Boa leitura.
Bom estudo.
Fernando Fernandes
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