8 - PAS 3 - Poema 'Evocação do Recife: memória, escravidão e história' e texto 'Recomeço (s.m.)'
Olá, gente.
A partir das duas obras do PAS abaixo, gostaria de propor uma intertextualidade a partir do poema Evocação do Recife: memória, escravidão e história de Manuel Bandeira e Recomeço, de João Deodorlin, o Akapoeta.
Após os textos, breve biografia e breves análises das produções em pauta.
Texto 1
Evocação do Recife: memória, escravidão e história
(Manuel Bandeira)
RecifeNão a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva se ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô
Vocabulário:
Mauritsstad - relativo a Maurício de Nassau, Brasil Colônia
Texto 2
Recomeço (s.m.)
(Akapoeta)
“recomeço (s.m.): é aceitar o que ficou no passado como o que deve ser: passado. é entender de uma vez por todas que o amor acaba, mas você continua (e que nem tudo que deixa de ser presente, deixa de ter valor). é o que um dia me ensinou o palhaço e seus sapatos: quando um pé vai para a frente, o outro obviamente fica para trás. é dar a si mesmo uma segunda chance e um punhado de paz.”
Referência: DOEDERLEIN, JOÃO. recomeço (s.m). Brasília, 31 mar. 2020. Instagram: @akapoeta. Disponível em: https://www.instagram.com/akapoeta?i-gsh=cmhxbHprYnhkZThn. Acesso em: 5 abr 2025.
Algumas considerações.
Manuel Bandeira (1886/1968) - Recifense de origem e, desde os quatro anos de idade no Rio de Janeiro, Manuel Bandeira foi poeta, crítico de arte, professor de literatura, tradutor, crítico literário e crítico de arte. Embora não tenha participado diretamente da Semana de Arte Moderna, foi um dos construtores do Modernismo no Brasil. Em 1904, Bandeira sofreu de uma enfermidade cuja cura se concretizou entre 1913 e 1914, na Suiça. A tuberculose trouxe ao autor um amadurecimento literário intenso.
Em linhas gerais, Manuel Bandeira desenvolveu três fases na sua literatura: a fase simbolista, a fase modernista e a fase pós-modernista, esta última em que a tradição e a renovação se fazem presente na sua produção poética. O poema apresentado na publicação é de fácil entendimento e, em termos de estrutura poética, segue a proposta modernista: temas cotidianos, liberdade formal (ausência de rimas de métrica) e liberdade vocabular (vocabulário livre). Em relação à liberdade formal, o poema acima serve como texto doutrinário no sentido em que o eu lírico afirma que a verdadeira língua portuguesa é aquela que emana do povo, e não aquela em que somos obrigados a imitar e seguir em função de um ordenamento sintático e gramatical.
João Doederlein (Akapoeta) - brasiliense, nascido em 1996. Aos 19 anos, segundo o site http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/jo%C3%A2o_doederlein.html, numa jornada de autoconhecimento, criou o projeto Ressignificados, em que, através das redes sociais, atribui novos sentidos para as palavras. Nessas releituras poéticas, suas experiências pessoais com substantivos, adjetivos e verbos pesam mais do que a objetividade dos dicionários.
A definição apresentada por Akapoeta para o verbete recomeço é de fácil entendimento e, para tal, se vale da metáfora do caminhar de um palhaço para apresentar seu ponto de vista.
Por fim, deixo duas provocações para reflexão.
a) O poema de Manuel Bandeira e a definição de recomeço do Akapoeta seguem na mesma direção?
b) Como você se posiciona a partir das visões sobre passado apresentadas acima?
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